Raul Córdula

Raul Córdula
Turma 9º ano G tarde

sábado, 23 de maio de 2015

CUTI - Um conto do livro "Contos crespos"

BONECA

Nenhuma! Cansou de tanto andar. Perguntara muito. Ouvira respostas de todo tipo. Algumas vezes, reagira à escassa delicadeza de certos balconistas e mesmo às ironias finas. Em outros momentos fora levado à autocomiseração, depois de ouvir, por exemplo:
Sinto muito!...
Ou:
Queira nos desculpar... A fábrica não fornece, sabe...
Desanimar? Não. Não havia por que desistir de encontrar o presente de Natal para a filha. Com os seus 33 anos, estava em plena forma física. Além disso, era como se a pequena o conduzisse pelas ruas do centro comercial. Continuar a procura, mesmo pisoteando o cansaço, era uma missão.
Com entusiasmo, entrou na loja seguinte. Cheia! Aguardou pacientemente. Uma mocinha branca, de ar meigo e aspecto subnutrido, indagou:
O senhor já foi atendido?
Não. Por gentileza, eu estou procurando uma boneca...
Temos várias. Olha aqui a Barbie, a Xuxinha... – e a loirinha foi apanhando diversas bonecas. Colocava-as sobre o balcão, como se escolhesse para si. Olha que gracinha esta aqui de olhos azuis! É novidade. Chegou ontem e já vendeu quase tudo. Chora, tem chupeta, faz pipi... E essa outra aqui? Não é uma graça? – e levou ao colo a ruivinha de tom amarelado, bem clarinha. Mexeu-lhe os bracinhos e as perninhas e indagou: Não gostou de nenhuma?
É que estou procurando uma boneca negra...
...
Meia hora de espera.
Tem sim! – o dono da loja dirigiu-se à empregada. Procura melhor, na prateleira de baixo, lá em cima mesmo, perto da pia.
A moça subiu de novo a escada, depois de sorrir um submisso constrangimento.
Desceu mais uma vez, recebeu novas instruções e tornou a sorrir. Em seguida, do alto do mezanino, mostrou o rostinho gorducho, marrom-escuro, de uma boneca. Radiante, a balconista empunhava-a como um troféu. Assim desceu a escada. Mas, descuidando-se nos degraus, despencou-se. Todos se apavoraram. As colegas de trabalho foram em socorro.
Nenhuma fratura. Apenas um susto. O patrão exasperou-se, mas logo conseguiu se controlar, vermelho como pimenta-malagueta. A loja estava cheia. Foi atender o cliente:
Peço desculpa pela demora e pelo transtorno. Espero que o senhor não tenha se chateado. O importante é que encontramos o produto. Está em falta, sabe... Eles não entregam. Eu mesmo encomendei a semana passada. Mas o representante disse que a firma está exportando para a África. Está certo, mas aqui também tem freguês que procura, não é? O senhor é brasileiro?
Sim.
Então... – o homem engoliu a frase e preparou a nota.
...
Já na rua, o pai, entre tantos pensamentos, alguns desagradáveis, lembrou-se da descontração a que fazia jus, depois de suar expectativas naquela manhã de dezembro. Respirou fundo. Contemplou o lindo embrulho de motivações natalinas, em que se destacavam o Papai Noel, crianças louras e muita neve. Seguiu, passos lentos, em direção a uma lanchonete.
Vai uma loura gelada aí, chefe? – pronunciou o balconista ao vê-lo sentar-se junto do balcão.
Sorriu, confirmando com um gesto de polegar.
Ao primeiro gole de cerveja, sentiu-se profundamente aliviado e feliz.



O texto de Cuti faz uma crítica a uma realidade: a falta de bonecas negras no mercado. Mostra um pai negro que insiste em conseguir uma; ele não desiste de jeito nenhum de compra o presente para a filha. A insistência mostra o orgulho, a segurança de ser negro. Ele quer a boneca negra que tem tudo a ver com a filha e não uma boneca branca. Ele parece ser irônico, observando a enrolação dos vendedores. 
Depois ele olha para o embrulho e olha para a cena de Natal ao redor, onde tudo é branco, como se o mundo fosse apenas dos brancos, mas ele sabe que o mundo também é dele e da filha, também é do negros.


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